“Alimento Saudável”? Como o marketing pode induzir em erro

“Alimento Saudável”? Como o marketing pode induzir em erro

“Alimento Saudável”? Como o marketing pode induzir em erro

Vivemos um tempo em que grande parte dos consumidores, inclusive os profissionais da área de alimentos, estão especialmente atentos à alimentação saudável, aos rótulos, aos claims e à rotulagem. Em meio a este contexto, surgem produtos que utilizam termos como “proteico”, “alto teor de”, “sem adição de açúcar”, “natural”, “premium”, “fitness” e muitos outros. Essas expressões geram a impressão de que o produto é saudável ou pelo menos mais saudável do que os concorrentes. Entretanto, pesquisas recentes e litígios judiciais apontam que nem sempre isso se confirma de forma robusta.

O objetivo deste artigo é discutir como esses termos podem levar à chamada health halo (aura de saúde), as armadilhas envolvidas e como quem trabalha com alimentos.

O que está por trás da “aura de saúde”

A rotulagem e o marketing de alimentos frequentemente se aproveitam da demanda por bem-estar, aptidão física e “vida saudável”. Por exemplo:

  • Um estudo recente sobre o mercado espanhol (4.325 alimentos processados) encontrou que alimentos com “claims de proteína” (“PC” = protein claim) tinham 90,8 % dos itens classificados como “menos saudáveis” segundo o modelo de perfil nutricional da Pan American Health Organization (PAHO-NPM).
  • Esse mesmo estudo mostrou que os alimentos com claims de proteína tinham mais frequência de alto teor de gordura ou sódio, ou adoçantes, do que os sem esses claims.
  • Em análise qualitativa de embalagens de snacks “proteicos”, foi observado que o design gráfico, as frases em destaque (“X g proteína”, “alto desempenho”, “para o atleta”), a iconografia de “ciência”, “tecnologia” e “corpo ativo” ajudam a reforçar a impressão de que o produto é saudável, mesmo sendo tradicionalmente um alimento com alto teor de açúcar ou gordura.
  • Nos Estados Unidos, há ações judiciais em que barras de proteína foram acusadas de propagandas enganosas — por exemplo, dizer “no artificial sweeteners” quando contêm maltitol (adoçante sintético) ou indicar “15 g proteína” quando a proteína efetiva utilizável (considerando qualidade ou digestibilidade) seria bem menor.

Principais “armadilhas” para observar

Alto teor de proteína + ainda assim muito açúcar, gordura ou sócio nutricionalmente pobre

Um estudo recente apontou que alimentos com alegação de “alto teor de proteína” muitas vezes têm mais gorduras, sódio ou açúcares livres do que similares sem essa alegação.

Por exemplo:

  • Em barras de proteína (protein bars) a reportagem indica que muitas vezes são “mais parecidas com guloseimas disfarçadas” porque embora digam “20 g de proteína”, também podem ter 40-50 g de carboidratos ou 25-30 g de açúcar.
  • Um caso jurídico nos EUA: Fit Snacks (da Alani Nutrition, LLC) foi acusada de usar o termo “FIT” quando as barras tinham níveis de gordura acima do permitido para rótulos “saudáveis”.

Apelo “saudável” ou “funcional” + ingredientes altamente processados

  • Embalagens com palavras como “clean”, “fit”, “light”, “funcional”, “alto em proteína” podem induzir a percepção de “isso é bom pra mim” — mas quando se examina a lista de ingredientes vê-se adoçantes artificiais, gorduras refinadas, muitos aditivos, óleos industriais etc.

 “Alto em proteína” mas qualidade da proteína ou digestibilidade pobre

  • Mesmo que tenha “alta proteína”, se a fonte for proteína vegetal isolada mal combinada (por exemplo, proteína de ervilha sozinha sem complementos) pode não ter perfil de aminoácidos equivalente.
  • A presença de muitos aditivos para tornar aceitável o sabor/textura pode indicar processamento elevado.

Reposição de refeição ou snack “fit” usado como atalho + negligência de outros nutrientes

  • O fato de um alimento ter mais proteína não o torna automaticamente adequado como refeição completa; muitos não têm fibras, são pobres em micronutrientes, ou têm excesso de calorias ou gorduras.

Pontos importantes

  • Além do claim, olhe para o perfil global de nutrientes
    Um alimento que destaca “10 g de proteína” pode conter 15 g de gordura saturada, 300 mg de sódio e 8 g de açúcar. Se o claim leva o consumidor a acreditar que é “saudável”, isso pode gerar incongruência ética e técnica.
  • Qualidade da proteína importa
    Nem toda proteína é equivalente. A digestibilidade, o perfil de aminoácidos e a matriz do alimento interferem. Como destacado em ação judicial, barras de proteína podem usar fontes de baixa qualidade, com digestibilidade reduzida.
  • Marketing pode impactar confiança do consumidor / marca
    Empresas que utilizam termos como “naturais”, “sem adição”, “fit” devem estar preparadas para eventuais questionamentos regulatórios ou de consumidores, inclusive via ações de classe. Isso também afeta reputação.

Tecnologia a favor de escolhas conscientes

Em meio a tantas opções nas prateleiras e a um marketing cada vez mais sedutor, o consumidor moderno começa a contar com aliados digitais que ajudam a enxergar além dos rótulos. Aplicativos como Desrotulando (brasileiro) e Yuka (americano) vêm se destacando ao oferecer avaliações rápidas sobre o real perfil nutricional dos produtos.
Com um simples escaneamento do código de barras, o usuário tem acesso a uma pontuação que considera a lista de ingredientes, o grau de processamento, a presença de aditivos e o equilíbrio nutricional. Assim, torna-se mais fácil identificar quando um produto “fit”, “zero” ou “rico em proteína” esconde quantidades elevadas de açúcar, sódio, gordura ou aditivos artificiais.

Essas ferramentas, antes vistas apenas como curiosidade, hoje influenciam diretamente o comportamento de compra e até as decisões de reformulação de produtos pela indústria. Ao mesmo tempo, trazem uma mensagem importante: a leitura crítica de rótulos e a educação alimentar continuam sendo essenciais, pois nenhum aplicativo substitui o olhar técnico ou o conhecimento sobre nutrição e segurança dos alimentos.

Além do Desrotulando e do Yuka, outras plataformas vêm ganhando espaço com propostas semelhantes, como FoodSwitch, Open Food Facts, CodeCheck e o NHS Food Scanner. Cada uma delas utiliza diferentes sistemas de pontuação e critérios (como o “semáforo nutricional” ou o “Nutri-Score”) para facilitar a compreensão sobre o impacto do alimento na saúde.

No contexto da transparência com o consumidor, o uso desses aplicativos pode ser uma excelente ferramenta educativa, tanto para o público em geral quanto para profissionais e empresas do setor. Afinal, se o consumidor tem cada vez mais acesso à informação, é papel da indústria garantir que essa informação seja clara, verdadeira e baseada em ciência, e não apenas em estratégias de marketing.

Aplicativo Região / Cobertura Foco principal Como pode servir para consumidores
Desrotulando Brasil Avaliação nutricional, grau de processamento, lista de ingredientes Mostra de forma simples se o produto é “mais” ou “menos saudável” ao escanear o código de barras.
Yuka Internacional (França, EUA, e outros) Saúde global: nutrição, aditivos, presença de orgânicos Pontua alimentos (0 a 100) e indica riscos de aditivos; mostra alternativas melhores. Avalia alimentos e cosméticos.
FoodSwitch Global (origem na Austrália) Perfil nutricional (sal, açúcar, gordura) + alternativas mais saudáveis Ajuda a trocar produtos por versões mais equilibradas (sistema de “semáforo”).
Open Food Facts Global, colaborativo (open source) Transparência: ingredientes, aditivos, perfil nutricional e origem Permite verificar ingredientes ocultos, alergênicos e aditivos.
CodeCheck Europa Aditivos, sustentabilidade e impacto ambiental Avalia alimentos e cosméticos, apontando compostos controversos (microplásticos, óleo de palma etc.).
NHS Food Scanner Reino Unido Avaliação simplificada (sal, açúcar, gordura) e sugestões de troca Usa sistema de cores e linguagem acessível, ideal para famílias.

 

Referências

  • Beltrá, M. et al. (2024). “Are Foods with Protein Claims Healthy? A Study of the Spanish Market.” Nutrients, 16(24), 4281. DOI:10.3390/nu16244281.
  • Chen, A. & Eriksson, G. (2019). “The mythologization of protein: a Multimodal Critical Discourse Analysis of snacks packaging.” Food, Culture & Society, 22(4): 423-445. DOI:10.1080/15528014.1620586. “Protein-Packed Foods May Not Be As Healthy As You Think, Study Finds.” News-Medical.net, 15 de dezembro de 2024.
  • “Fit Snacks Protein Bars Falsely Advertised as Healthy, Class Action Claims.” ClassAction.org

 

Tendências globais de alimentos e bebidas 2026

Fonte da imagem: Freepik.
Keli Lima
Keli Lima

CEO da BR Quality e Estilo Food Safety, especialista em Qualidade e Segurança dos Alimentos. Atua como consultora, mentora e auditora líder em normas de Food Safety e ESG.