Ética e Moral: em Food Safety, na gestão e na vida cotidiana

Ética e Moral: em Food Safety, na gestão e na vida cotidiana

Depois de uma aula com o professor Clóvis de Barros Filho, um triplex ficou armado na minha cabeça e desde então venho tentando entender mais sobre Ética e Moral.

Dentre tanto que ouvi, começo a escrever este texto a partir de uma frase dita por ele em uma das aulas:

“A ética ganha espaço quando a moral está em baixa” e só essa frase é suficiente para gerar uma desconstrução sobre estes temas para mim.

Será que conhecemos o suficiente sobre Ética e Moral para tratar de Cultura de Segurança dos alimentos ou qualquer outra cultura organizacional a ser trabalhada?

Será que é correto chamar de Código de ética, as diretrizes que estruturamos para uma organização seguir? É correto chamar código de ética ou seria melhor chamar código de conduta?

E os valores das organizações, onde eles entram nesta história?

 

Ética e Moral: em Food Safety, na gestão e na vida cotidiana

Em um mundo que valoriza indicadores, processos e compliance, falar de ética e moral parece, à primeira vista, um tema abstrato. Mas é exatamente o contrário. Quando falamos de segurança dos alimentos, liderança, tomada de decisão ou qualquer atividade onde vidas, reputações e confiança estão em jogo, ética e moral deixam de ser conceitos filosóficos e passam a ser fundamentos operacionais.

E aqui está o ponto essencial: só precisamos falar de ética quando a moral está em baixa.

Essa frase — que ecoa reflexões de Clóvis de Barros Filho e inúmeros filósofos contemporâneos — resume o problema central do nosso tempo.

Etimologia das palavras

Assim como entender a diferença entre moral e ética, a etimologia das palavras também não é algo simples dentro da história e da filosofia.

De acordo com Figueiredo, a compreensão de ética e moral começa no termo grego ethos, que possuía duas grafias com sentidos diferentes. A primeira, ηθοζ (êthos), significava inicialmente “morada” ou “abrigo”, evoluindo depois para “modo de ser” ou “caráter”, isto é, o conjunto de disposições morais que o indivíduo constrói ao longo da vida. A segunda forma, εθοζ (éthos), referia-se a “hábitos” ou “costumes”, correspondendo ao plano concreto das ações, tradições e práticas sociais.

O latim, porém, não possuía duas palavras distintas para traduzir esses sentidos. Ambos os ethos gregos foram vertidos para mos/mores, origem da palavra moral. Essa fusão explica grande parte da confusão entre os dois termos.

Assim, etimologicamente, ética e moral compartilham a mesma raiz ligada a caráter, hábitos e modo de vida. A distinção atual não é etimológica, mas conceitual:
Moral refere-se ao conjunto de normas, valores e costumes de uma sociedade;
Ética é a reflexão filosófica que analisa e fundamenta esses costumes.

De acordo com Figueiredo, a ética pode ser compreendida como a ciência da moral. Isso significa que a ética é uma construção intelectual — organizada pela razão humana — que tem como objeto de estudo justamente a moral. A moral, portanto, antecede a ética, pois fornece a “matéria-prima” sobre a qual a reflexão ética se realiza.

Mas o que é moral?

Segundo o autor, a moral refere-se aos costumes e às regras de conduta reconhecidas e aceitas por uma sociedade em determinado contexto histórico e cultural. Um fato moral é aquele que é julgado à luz desses costumes e normas compartilhados, sendo sempre condicionado pela tradição e pela realidade sociocultural de um grupo. Assim, a “realidade moral” corresponde ao conjunto de práticas, hábitos e juízos sobre essas práticas, observáveis dentro da vida social (FIGUEIREDO, 2008).

Nesse sentido, a moral pode ser entendida como o conjunto de regras de conduta assumidas livre e conscientemente pelos indivíduos, com a finalidade de organizar a convivência e regular as relações interpessoais segundo valores culturalmente atribuídos ao bem e ao mal. Já a ética — também chamada pelo autor de filosofia da moral — possui um caráter mais abstrato: trata-se da disciplina que reflete criticamente sobre as noções, princípios e fundamentos que orientam a vida moral.

Figueiredo enfatiza que a ética se ocupa do estudo da moralidade do agir humano, isto é, da bondade ou maldade das ações à luz de uma ordem moral. É tarefa da ética investigar os diferentes sistemas morais produzidos ao longo da história, compreender a fundamentação das normas e proibições, e analisar as concepções de ser humano e de existência que sustentam esses sistemas.

A ética é considerada uma ciência porque possui objeto próprio (a moral), leis e método: consiste na reconstrução intelectual e filosófica das práticas morais, examinadas sob o prisma racional e crítico. Seu método é a reflexão teórico-filosófica aplicada à conduta humana e às normas que a orientam.

 

É importante ainda, entendermos a origem da palavra Conduta e Valores, que são dois termos intimamente ligados quando o assunto é Ética e Moral na produção de alimentos.

Conduta e Valores

A palavra conduta vem do Latim conductus, que significa “levar”, “guiar” ou “conduzir”, derivando de com (junto) e ducere (liderar, guiar). Essencialmente, conduta refere-se à maneira como alguém é “conduzido” ou “guiado”, seja em seu comportamento (modo de agir).

 

Enquanto Valor vem do latim valore, que significa “ser forte”, “ter saúde”, “ser vigoroso”. Inicialmente, valor referia-se à força física, à coragem e à capacidade de agir. Com o tempo, o termo passou a indicar também aquilo que tem mérito, importância ou preço — tanto no sentido econômico quanto no moral.

Na filosofia e na ética, “valores” tornou-se a palavra que designa aquilo que uma pessoa, um grupo ou uma cultura considera importante, desejável ou necessário para orientar suas ações (como justiça, respeito, honestidade, liberdade etc.).

Moral: aquilo que eu faço quando ninguém está olhando

De acordo com referências como Furrow, a moral diz respeito ao indivíduo: é a bússola interna que orienta o que eu sei que é certo mesmo quando ninguém está fiscalizando.

Sua essência é a consciência e não a norma.

O professor Clóvis disse em uma das aulas que: “Quando não tem ninguém olhando, ainda tem alguém olhando, pensando e decidindo: EU.”

A moral é esse espaço silencioso onde cada um decide se fará o que deve ser feito, mesmo que custe esforço, tempo, desconforto ou vantagem perdida. É o entendimento de que nem todos os caminhos são aceitáveis para se alcançar o que queremos.

Segundo Stan Van Hooft, a moral está ligada à virtude — não ao medo da punição. Dwight Furrow complementa: a moral nasce da formação do caráter, de hábitos internalizados, não de imposições externas.

Ética: o dilema coletivo que precisamos resolver

“A ética é vida boa, para todos e todas em instituições justas”. (Paul Ricoeur, filósofo citado por Mário Sérgio Cortella em suas explicações sobre Ética). Ele ainda complementa dizendo que “Ética é o conjunto de valores e princípios que orienta nossa conduta nas relações humanas para que a convivência seja possível.” Segundo ele, como somos livres, a vida nos coloca três perguntas: Quero? Posso? Devo?”

Clóvis de Barros Filho acrescenta que a ética é um hábito de respeito pela vida do outro como valendo tanto quanto a sua própria. Ou seja, ética é uma construção coletiva que define o que consideramos justo, aceitável, seguro e responsável em sociedade.

Nem tudo que eu “Quero” eu “Posso” ou “Devo”. Nem tudo que eu “Posso” eu “Devo” e nem tudo que eu “Devo” eu “Quero”. A Ética então, são os princípios para decidir se o que eu quero, eu posso e devo.

É por isso que processos, regras, POPs, auditorias e legislações existem para garantir que, diante de dilemas, exista uma referência comum.

Quando a moral individual falha, é a ética (o acordo coletivo) que precisa proteger o sistema.

A ética, é sempre acompanhada de um dilema. Se não há dilema, não há ética, há apenas obediência. E é neste momento do dilema que usaremos a nossa moral individual.

Ou seja, eu sei que, fraudar um registro de dados do processo, não é permitido por lei, nem pelas regras da empresa, no entanto, em determinada ocasião, me deparo com uma situação onde considero a possibilidade de mascarar um parâmetro de qualidade, pois, tive um problema com refrigeração e agora me encontro em um dilema onde: tenho uma matéria prima que para liberar eu preciso fraudar o parâmetro a ser registrado ou descartar e gerar um prejuízo econômico.

A diretriz Ética aceitável nesta situação é clara: registrar o parâmetro correto e descartar a matéria prima, a ação que efetivamente eu tomarei está associada a minha moral.

Vamos a um exemplo do nosso cotidiano apresentado por Mário Sérgio Cortella em um vídeo disponível no canal @amoDireito no YouTube:

Eu tenho um princípio ético de vida “O que não é meu, não é meu”. Isso é principio, teoria. No entanto, estou em um ambiente com outras pessoas, e uma delas esquece um livro que eu estava inclusive desejando ter. Pegar o livro ou Devolver o livro é uma atitude moral. O principio é teórico (Ética), o ato é prático (Moral).

A Ética é a teoria sobre a conduta e a Moral é a prática.

 

Quando filmamos alguém, eliminamos a moral e sobrecarregamos a ética

“Quando eu tenho uma câmera me filmando, retiro a decisão moral individual real. A pessoa age porque sabe que alguém pode ver — já não é mais consciência.”

Isso é exatamente o que ocorre em sistemas de vigilância, auditorias, monitoramento por sensores, câmeras em cozinhas ou linhas de produção.

A presença de observação externa muda o tipo de decisão:
– não é mais uma escolha moral;
– é uma resposta ao risco de ser visto.

E essa substituição tem um efeito perigoso, é como uma “moral terceirizada”, onde ambientes hiper-regulados podem gerar comportamentos de conformidade superficial. Por outro lado, ainda, com todos estes controles, existem desvios éticos recorrentes nos mais variados processos, do registro falsificado a fraude dos alimentos.

A pergunta clássica da moral, especialmente de matriz kantiana (Immanuel Kant) é: “e agora, o que devo fazer?”.

 

O problema contemporâneo: quando a moral é pouco utilizada

Câmeras, POPs, protocolos, compliance, auditorias, sistemas de rastreabilidade, treinamentos obrigatórios, tudo isso é fundamental. Mas tudo isso é insuficiente diante da moral de cada indivíduo.

Food Safety, por exemplo, é um campo onde:

  • ninguém vê a temperatura real do alimento no instante crítico;
  • ninguém vê se o funcionário realmente higienizou as mãos;
  • ninguém vê se o manipulador separa ou não o cru do cozido;
  • ninguém vê se um colaborador decide “deixar para depois” uma correção importante.

A cultura de segurança depende menos do que é escrito e mais do que é internalizado. A moral é invisível e por isso é tão potente e tão perigosa quando não existe.

Por que empresas vivem falando de ética? Porque a moral está falhando

Segundo Clóvis, “A ética é necessária quando a moral não basta.”

Empresas escrevem códigos de ética porque sabem que não podem confiar plenamente na moral de todos os indivíduos, precisam padronizar formas de agir e decisões a serem tomadas em momentos de dilemas e talvez o nome correto para isso seja código de conduta e valores organizacionais. E ainda assim, na prática, na hora da decisão, o que conta é a moral individual e talvez por isso, falhamos tanto. Porque não é sobre regra e diretriz, não é sobre câmera e auditoria, é sobre comportamento, é sobre moral individual e do time.

Será que investimos o suficiente na formação moral do nossos times? É possível fazer isso?

Criamos regras, mas não criamos exemplos.
Criamos valores, mas não criamos coerência.
Criamos discursos, mas não criamos cultura.

 

Ética e moral em Food Safety: o risco está nas mãos de quem decide no microsegundo

No setor de alimentos, isso é evidente.

A maior parte dos surtos não ocorre por falta de norma, mas por falha moral

– por descuido,
– por hábito,
– por achar que “não dá nada”,
– por priorizar velocidade em vez de segurança,
– por seguir o grupo em vez de seguir a consciência.

Em alguns casos, falhas éticas, pois já faz parte da diretrizes daquela instituição não valorizar as regras de segurança dos alimentos e a regra instaurada já é o desrespeito pelo outro.

E é nesse ponto que os autores convergem: ética é a orientação; moral é a ação. Sem ação moral, a ética vira papel.

 

Ética é tema coletivo; moral é tema íntimo; e precisamos dos dois

  • A moral garante que eu faça o certo porque é certo.
  • A ética garante que todos saibam qual é o certo.

No Food Safety e em qualquer área onde a vida do outro depende de decisões que ninguém vê, falar de ética e moral não é opcional: é a base da confiança.

Como diria Clóvis de Barros Filho:

“Viver é conviver. E conviver exige responsabilidade.”

E essa responsabilidade começa antes da regra, antes do protocolo, antes da auditoria,
começa na consciência de cada pessoa.

 

 

Referências:

Antônio Carlos dos Santos. Variações conceituais entre a ética e a moral. Universidade Federal de Sergipe, Programa de Pós-Graduação em Filosofia, Aracaju/SE, Brasil. Disponível em: https://doi.org/10.4013/fsu.2021.222.07. Acessado em 08.12.2025.

Aula: Ética e Inteligência moral na Era Digital – Pós graduação em Neurociênica – PUC Paraná – Professor Clóvis de Barros Filho e professor Murilo Karasinski, acessada em novembro de 2025.

Cortella, Mario Sérgio. Programa GNT. Disponível no canal do YouTube @amoDireito. https://www.youtube.com/watch?v=1RZJLzeYhqM&t=2s

Dwinght Furrow. Ética. Conceitos – chave em filosofia. Tradução: Fernando José R. da Rocha. Editora Artmed. 2007

FIGUEIREDO, A. M., Ética: origens e distinção da moral. Saúde, Ética & Justiça. 2008;13(1):1-9. Acessado em 08.12.2025, file:///Users/keli/Downloads/scardoso,+V13+n1+a+01%20(1).pdf

Stan Van Hooft. Ética da Virtude. Tradução de Fábio Creder. Petrópolis. RJ. Editora Vozes. 2013

 

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Keli Lima
Keli Lima

CEO da BR Quality e Estilo Food Safety, especialista em Qualidade e Segurança dos Alimentos. Atua como consultora, mentora e auditora líder em normas de Food Safety e ESG.